Pelos caminhos de Fátima
Ana Cardoso | Posted on |

Há 102 anos que no dia 13 de maio todos os caminhos vão dar a Fátima. Apesar de todas as dificuldades, há algo de mágico nesta viagem que faz milhares de peregrinos regressar todos os anos.
Primeiro dia
O ponto de partida é Muge, uma freguesia do concelho de Salvaterra de Magos, a 78 km de Fátima. A jornada começa às cinco da manhã, para evitar as horas de maior calor. A estrada estreita por onde os peregrinos caminham é iluminada apenas pelas luzes que eles próprios empunham e pelas dos camiões que passam a grande velocidade. Avança-se em fila, para evitar acidentes.
A primeira paragem para abastecer é em Benfica do Ribatejo. O carro de apoio que acompanha os peregrinos durante o caminho já lá está à espera. Abrem-se as bagageiras e aproveita-se para comer alguma coisa. Os primeiros raios de sol começam a despontar, mas rapidamente se transformam em gotas de chuva. Após deixar a vila, o grupo segue por campos de cultivo – onde, àquela hora, já se encontram mulheres a trabalhar –, até chegar à ponte D. Luís, em Santarém.
A chuva intensifica-se e os peregrinos dão uso às capas impermeáveis. Lá em baixo, as águas da ribeira estão agitadas. Depois de passarem a ponte, o chão de pedra escorregadio obriga-os a redobrar o cuidado para não caírem.
Quando chegam à estação de comboios de Santarém, têm de esperar que a cancela seja aberta por uma senhora simpática, já com os seus 60 anos. Após a passagem do comboio, podem prosseguir.
Na estrada, veem-se os primeiros carros de apoio, que distribuem garrafas de água. O pequeno-almoço fica completo com as nêsperas que os peregrinos apanham à beira da estrada. Depois de uma subida acentuada, chegam, por fim, à junta de freguesia de Alcanhões. O objetivo do dia foi cumprido e os primeiros 30 km estão feitos. Para comemorar, o almoço é a famosa sopa da pedra de Almeirim.
O grupo que começou com esta tradição é composto por cinco pessoas. Alda, Fernando, Cristina, Noemi e Mário vêm do Penteado – uma freguesia pertencente ao concelho da Moita – e fazem esta caminhada juntos há cinco anos. A eles, todos os anos se juntam novos reforços. Este ano, esse reforço é a repórter do 8ª Colina, que os acompanha ao longo do percurso.
Segundo dia
O percurso do segundo dia começa onde terminou o do dia anterior. A chuva insiste em fazer-nos companhia. No chão molhado há rãs e caracóis. São cinco e meia da manhã e nas casas ainda não se vê nenhuma luz acesa.
Saímos da localidade e seguimos pela via rápida. Nos limites da estrada, observa-se o lixo que os peregrinos vão deixando para trás, desde garrafas de água até lenços de papel. Porém, durante vários quilómetros, não se vê um único caixote do lixo.
As primeiras dores nas pernas começam a fazer-se sentir. Paramos para descansar num café, onde aproveitamos para fazer alguns alongamentos. Dentro do estabelecimento, já se encontra outro grupo de peregrinos. Nota-se que a empregada não está habituada a tanta clientela, uma vez que os cafés e as sandes só chegam meia hora depois de o pedido ser feito. Ao fundo da sala, está uma gaiola com um papagaio. As pessoas divertem-se a ouvi-lo dizer “Benfica” e “Porto”.
Avançamos até Pernes. Pelo caminho, os campos são habitados por vacas e ovelhas. Nas bordas da estrada, as pessoas aproveitam para colher orégãos, flores e catos. Os mais experientes já levam um saco no bolso. Entretanto, avista-se a primeira placa a indicar o “destino final”.
Pelo caminho, cruzamo-nos com um grupo de peregrinos do Alentejo, que nos oferece filhoses e cenouras.
Finalmente chegamos à igreja da Louriceira, onde paramos para almoçar, juntamente com outros peregrinos.
Apesar de este ser um local habitual de paragem, para Ângelo é a primeira vez. Com 23 anos, Ângelo, que vem da Baixa da Banheira, confessa não ser crente, mas para ele fazer esta viagem era um objetivo: “Apesar de não ter fé, queria ter a oportunidade de conhecer o outro lado, de perceber o que leva estas pessoas a fazer isto todos os anos.”
Terceiro dia
6h da manhã. Para além das dores, as bolhas já se instalaram nos pés. Mas desistir não é opção. Não há chuva, mas em compensação sopra um vento forte. O percurso, apesar de mais curto, é o mais temível: para chegar a Minde é preciso subir a Serra de Candeeiros, uma serra com mais de 600 metros de altitude. As subidas são acentuadas e o vento não ajuda a avançar. Mas a fé é mais forte e a entreajuda é um incentivo: dita a regra que ninguém fica para trás. E desta vez juntam-se dois reforços, vindos da Moita, no distrito de Setúbal: Custódio e André.
Quando chegamos, finalmente, ao topo, espera-nos a tão merecida recompensa. No café de Casais Robustos, que já é de paragem obrigatória, todos se deliciam com a célebre ginjinha e os saborosos pastéis de nata.
O percurso termina junto aos Bombeiros de Minde, mas, uma vez que estamos próximos de Fátima, aproveitamos para conhecer a Casa dos Pastorinhos, em Aljustrel (onde nasceram os beatos Jacinta e Francisca) e o Museu da Cera.
Há três anos que a família Cardoso faz esta caminhada. Nas palavras da mãe, Rosa Figueira, o importante não são os quilómetros percorridos, mas sim a experiência, o companheirismo e a paz que se sente no espírito. “É impossível fazer um ano e não voltar no segundo e no terceiro.”
Último dia
18 km: a distância que falta percorrer. À chegada ao quartel de Minde, pelas seis da manhã, os bombeiros já estão a pé para auxiliar quem precise. Prosseguimos o caminho: há que enfrentar mais uma subida, desta vez pelo meio de uma mata. O piso irregular não facilita a caminhada, mas 20 minutos depois estamos no fim. Paramos para recuperar o fôlego num átrio em Covão do Coelho, onde ocorre uma missa campal.
Pela primeira vez, o sol e o calor fazem-nos uma visita. Já na reta final, evocam-se os momentos de reflexão e as peripécias vividas. Por fim, chegamos a Fátima. Um grupo que começou com cinco pessoas termina com 23.
Esta é a primeira vez que a família Guerreiro embarca nesta aventura. Para Jorge, o percurso foi um desafio, mas a chegada fez com que tudo valesse a pena: “Sentimo-nos realizados e emocionados quando chegamos ao fim da etapa, depois de ultrapassadas todas as dificuldades. Se fosse fácil, o sentimento não era o mesmo.”
A chegada ao Santuário é um momento de grande emoção. Os peregrinos chegam de braço dado. Choram de felicidade, rezam e abraçam-se uns aos outros. Depois da comoção inicial, alguns aproveitam logo para comprar lembranças e velas para a procissão da noite. Outros dirigem-se ao lava-pés para tratar as bolhas. Na enfermaria, as enfermeiras vão conversando com os caminhantes: perguntam como correu a caminhada, quantos dias fizeram, de onde vêm. Quando lhe digo que estudo na Escola Superior de Comunicação Social, a enfermeira que me atende conta-me que mora em Benfica e promete-me que sempre que passar na 2.ª circular, junto à Escola, se lembrará de mim. Eu prometo-lhe que também nunca me esquecerei dela. E, neste lugar, as promessas são para ser cumpridas.
Devido ao calor, o almoço é à sombra das árvores: cada um está encarregado de trazer algo para partilhar no piquenique. Depois da sobremesa, estendemos as mantas e os lençóis no chão e aproveitamos para descansar até que fique menos calor e possamos instalar-nos no Santuário para assistir às cerimónias.
Às 18 horas, o sol já não está tão alto. Arrumam-se as coisas dentro dos carros e só se leva o essencial: um banco, água, jantar e, claro, as velas. Dirigimo-nos para o Santuário e ainda conseguimos arranjar lugar junto às grades. Pelos vistos, não fomos os únicos a tentar fugir ao calor. Àquela hora, ainda há vários grupos a chegar ao local. Como é óbvio, o 8ª Colina não é o único órgão de comunicação presente, mas é capaz de ser o único a viver toda a experiência por entre os crentes.
Às 22h, o padre dá início à cerimónia. Começa por dar a missa e, mais tarde, reza o terço em dez línguas diferentes. À sua ordem, as velas são acesas e principia a procissão. As várias paróquias presentes desfilam ao som do cântico Avé Maria. A imagem de Nossa Senhora sai da capela e dá a volta ao recinto. À sua passagem, as pessoas presentes ficam claramente emocionadas: deixam cair algumas lágrimas e fazem os seus pedidos, agradecimentos e promessas.
Apesar da criação de estruturas de recolha de lixo por parte da Sociedade Ponto Verde, bem como de uma ação de sensibilização, o espaço fica repleto de lixo deixado para trás pelos peregrinos. Após as celebrações, o próprio Santuário de Fátima e a Câmara Municipal de Ourém acabariam por recolher os resíduos, com o auxílio de um grupo de alunos do Colégio D. Miguel, em Fátima.